sábado, 5 de abril de 2008

PARA A GENTE SE DESACOSTUMAR...

Os tempos atuais me têm colocado a pensar...
Tantas mudanças, descobertas científicas, tanto progresso tecnológico ladeados pela indiferença, pelo desamor e por desequilíbrios psicológicos de toda sorte!... Parece-me que quanto mais sabemos sobre tudo, mais desconhecemos os valores essenciais da vida!...
A última semana foi de perplexidade para tantos quantos assistiram aos noticiários da TV. A morte inexplicável de uma criança nos desalojou de nossas vidas costumeiras, afetou o nosso ânimo, colocou-nos, face a face, com uma dura realidade, para qual não encontramos justificativas. A dor foi capaz de - ainda que por instantes - nos propor uma pausa para a ressignificação do humano: o que somos, afinal, nessa engrenagem que se chama existência? Nela, que papel nos cabe? Quais princípios nos têm servido de norte neste percurso? Como me relaciono com o outro que segue ao meu lado? Que grau de importância ele tem para mim?
Questionamentos também que me faço sob o impacto dessa triste ocorrência...
Lamentavelmente, no entanto, é muito provável que, passados alguns dias sobre esse fato, voltemos à nossa rotina, falsamente consolados de que "felizmente" não foi conosco!..

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Como complemento a esta reflexão, transcrevo-lhes este seríssimo texto de MARINA COLASSANTI - porque de tanto nos acomodarmos, perceberemos, um dia, que desperdiçamos oportunidades valiosas ...

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EU SEI, MAS NÃO DEVIA



Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.(...) A gente se acostuma esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata de produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir os passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta e, que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.


( Fotografia de autoria desconhecida )





5 comentários:

Ela disse...

Este "se acostumar" toca exatamente no ponto.
O meu repúdio ao Costume.
Eu quero novidade, eu quero sol, janela aberta, água limpa, sorriso de gente.
Você me fez pensar com este texto e eu adorei isto.

Irmão Sol, Irmã Lua disse...

Quanto mais nos aproximamos da perfeição, menos exigimos dos outros.
Jean Petit-Senn

Rose, linda menina,
A morte dessa criança nos abolou a todos, a todos que ainda se comovem com a dor alheia, principalmente quando envolve um coração inocente que tinha tanto por viver ainda. É uma realidade infeliz o fato de nos acostumarmos com aquilo que não devíamos, com o mal e, principalmente, com os nossos erros e defeitos, aos quais deveriam ser os primeiros a serem enfrentados e combatidos diariamente. Mas acho bom nos acostumar a dar sem querer nada em troca, até mesmo um simples sorriso. A verdade é que nessa vida todos sofrem, a dor a todos visita e é preciso não ficar indiferente a dor alheia, buscando amenizá-la. Creio que a grande questão é a iniqüidade que se multiplica, levando ao esfriamento do amor nos corações, como havia profetizado Nosso Senhor. Busquemos tudo fazer sem nada cobrar, permitindo que o amor se expanda dentro de nós nos mantendo aquecidos. É preciso lutar contra o mal e é preciso doar sempre, foi esse o grande exemplo que o nosso Mestre nos deixou.
Beijo de carinho,
Benja.

Irmão Sol, Irmã Lua disse...
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Irmão Sol, Irmã Lua disse...

Doce menina,
Quando falei em nos acostumar a dar sem esperar retorno, é porque creio que devemos buscar fazer tudo na vida pondo o sentimento no que fazemos, que o que importa é o princípio do amor e nele esta toda recompensa, ou seja, na capacidade de amar. O homem se acostumou na vida com relações de troca, que pra tudo que se faça é preciso um retorno. Mas nas coisas do coração a recompensa é espiritual e precisamos perder o mau costume de querer retorno, como se os sentimentos fossem moeda de troca.
Você, com suas palavras, me faz refletir melhor e lhe dar razão, o verbo melhor empregado é mesmo o de buscar compreender, pois com o mal não devemos nos acostumar, e a falta de educação de não cumprimentar um irmão, a indiferença com o outro, também são males que devem ser evitados e que podem levar ao esfriamento dos sentimentos humanos. Porém devemos ter o cuidado de evitar o mal, mas sempre acolher o irmão.
Beijo de carinho,
Benja.

Marilac disse...

Querida Rose,
A morte inexplicavel de uma criança vitima de uma violência absurda,abala todo um país e nos faz refletir...
Que Deus ampare e dê forças a essa familia pois seja qual for o resultado da investigação estão vivendo momentos muito dificeis.

Lindo esse texto da Marina Collasanti, a gente não devia mesmo se acostumar...Esse texto faz pensar, faz rever alguns comportamentos, obrigada por nos lembrar de que tudo pode ser diferente, depende de cada um de nós.

Li o comentário seu e do Benjamim sobre se acostumar e compreender e concordo com a conclusão:
"buscar compreender, pois com o mal não devemos nos acostumar...

abraços
com carinho
Marilac

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